Muito antes dos fuzis, dos tanques de guerra e das táticas militares, a arte foi a arma mais importante para a ascensão de regimes totalitários como o nazista. E, hoje, talvez esteja na nossa arte, ou na ausência dela, o diagnóstico mais preciso para a situação em que nos encontramos.
“Há um sinal que os soviéticos podem fazer que seria inconfundível, que avançaria dramaticamente a causa da liberdade e da paz. Secretário-Geral Gorbachev, se você busca a paz, se você busca prosperidade para a União Soviética e a Europa Oriental, se você busca a liberalização: venha aqui para este portão! Sr. Gorbachev, abra este portão! Sr. Gorbachev, derrube este muro!”
Dois anos antes da queda do Muro de Berlim, Ronald Reagan proferiu um discurso desafiando Mikhail Gorbachev a demolir a cortina de ferro.
“Mr. Gorbachev, tear down this wall!”, era o desafio que o presidente americano dirigia ao último ditador soviético.
Como todos sabemos, o grande muro que separava a Berlim socialista da capitalista foi derrubado em 1989, depois do grande intermédio de São João Paulo II, como você pode conferir em um dos destaques (Polônia), no meu Instagram.
Derrubada do muro de Berlim.
No entanto, para entendermos a queda do muro, precisamos compreender primeiro como ele foi erguido.
Não falo das propriedades de construção, dos tijolos, placas de aço ou concreto. Não há muitos mistérios arquitetônicos no muro que dividiu a Alemanha — não é esse o grande acontecimento de 89 do qual iremos tratar neste artigo.
O mistério, na verdade, é o seguinte:
Como os ditadores do século XX foram capazes de erguer exércitos e cooptar aliados e cidadãos coniventes até chegar ao estopim do totalitarismo, manifestado nas construções físicas?
Para isso, é necessária uma antessala cultural que prepare as consciências, inclinando-as à receptividade daquelas idéias. É necessária uma outra espécie de arquitetura.
Foi precisamente essa arquitetura que, no mesmo ano de 1989, o diretor sueco Peter Cohen denunciou em seu documentário Arquitetura da Destruição, juntamente às táticas de propaganda nazista para convencer o povo alemão a apoiar Hitler.
O que ele revelava é que, muito antes dos fuzis, dos tanques de guerra e das táticas militares, a arma mais importante para a ascensão nazista foi uma muito mais sutil: a arte.
A música, a moda, o cinema, a literatura — tudo isso foi fundamental para que o Terceiro Reich tomasse forma.
Mas qual a vantagem disso? Quais motivações tinham Hitler, Goebbels e os ministros da propaganda nazista para invadirem a arte com tanta força?
A resposta é simples: é a arte que conduz o sentimento popular. São os símbolos que nos avivam as memórias.
É o David, de Michelangelo, que nos transmite a força masculina e a coragem de quem confia em Deus;
É Nocturne, de Chopin, que nos relembra a melancolia doce das noites de luar;
São os sonetos de Luís de Camões que nos relembram o doce sacrifício do amador transformar-se na coisa amada;
David, de Michelangelo.
Também são os uniformes nazistas pomposos, os hinos cantados belamente por orquestras, a estética impecável e toda a sincronia que causaram no povo alemão a conivência com a ideologia propagada por Hitler.
Há uma cena icônica no cinema que representa bem os efeitos que uma peça artística causa na alma.
Em A Noviça Rebelde, o Capitão von Trapp, um orgulhoso austríaco anti-nazista, é convocado pelo exército do Terceiro Reich para comandar sua tropa marítima.
Ele estava resistente a aceitar, preferindo fugir com sua família da escolta alemã, mas o amor pela pátria ainda o consumia: sentia o dever moral de reacender no coração dos seus compatriotas o orgulho nacional e a esperança.
Então, acompanhado de sua esposa e de seus filhos, apresenta uma peça musical para uma platéia de austríacos seduzidos pelo nazismo.
A música escolhida, Edelweiss, fazia referência a um precioso símbolo nacional: a planta do amor, dos Alpes Austríacos — uma flor branca que, mesmo não sendo a mais bela das flores, nasce em poucas regiões do mundo, permanecendo viva por 80 anos —, que representa a fidelidade eterna.
Ao ver o Capitão von Trapp emocionado, enquanto reproduzia a canção, mesmo que por tão pouco tempo, os olhos dos austríacos voltaram a brilhar e eles lembraram da própria grandeza.
A Noviça Rebelde (The Sound of Music), dir. Robert Wise (1965).
Que nos sobrem Homero, Dante, Virgílio, Shakespeare e a beleza da arte verdadeira…
Está aí o significado e a importância da arte: a capacidade de tocar a alma dos que a consomem. Ela abre as almas e as consciências para novas possibilidades de vida, circunstância e realidade.
Daí que, se usada para o bem, ela possa levar o homem a desejar e buscar bens que ele até então sequer imaginava como possíveis.
Mas, quando instrumentalizada para o mal, pode levá-lo a assentir e praticar os piores tipos de bestialidades.
Isso, inclusive, talvez diagnostique um dos maiores problemas da nossa geração, que fora profetizado por Aldous Huxley, em seu Admirável mundo novo.
Se o leitor ao leitor não parece clara essa relação, proponho um desafio: abra, ainda hoje, o catálogo de uma das maiores plataformas de streaming do mundo e busque, entre as suas produções e entre os filmes disponibilizados, algo que remeta ao Bom, ao Belo e ao Verdadeiro.
Procure, entre os filmes populares, obras como E o vento levou; Casablanca; A felicidade não se compra; O homem que não vendeu sua alma.
Depois disso, procure os filmes mais banais, imorais, desconexos com a realidade, demasiadamente futuristas e compare: a quantidade do segundo grupo em detrimento do primeiro é absurda!
Abra uma plataforma de músicas e busque as mais ouvidas. Não é nada fácil acharmos o Requiem, de Mozart, as belas sinfonias de Beethoven ou até mesmo músicas modernas com uma profundidade maior.
Isso sem mencionar as exposições de arte contemporânea, que ignoram o que fizeram os grandes artistas e passam tão somente a arremedar certas técnicas, como as encontradas nas obras de Picasso, Dalí e Romero Britto.
E o que resta para os que querem ir mais fundo? Os que querem admirar a Disputatio, de Rafael Sanzio ou perceber a misticidade da Criação de Adão?
O que resta para nós?
Se o leitor não encontra respostas, aqui vai: sermos tratados como o famoso selvagem de Huxley, que foi expulso da convivência em sociedade, por ter recitado Shakespeare.
A nossa arte caminha para uma direção diferente da instrumentalizada pelo Terceiro Reich, porém, para um lugar igualmente destrutivo.
A geração formada por Hitler, através da cultura, era um geração má e utópica, que validava o assassinato de milhões em nome de um paraíso nesta terra.
A geração formada por nossos artistas, nossos filósofos e muitos dos nossos professores é uma geração de completos ineptos e insensíveis, que não percebem a realidade (nem boa, nem má) do mundo.
É a geração do totalitarismo travestido de democracia, do politicamente correto, da pornografia explícita nas redes sociais e do adultério imaginário encontrado no que atualmente se convencionou chamar de “música”.
Uma geração que ojeriza sacrifícios, que despreza a humanidade e que, ao presenciar acidentes, brigas na rua etc., não pára mais para ajudar, mas para observar como num voyeurismo, filmar e publicar aquelas cenas.
Comedian, “obra” do artista Maurizio Cattelan exposta na feira Art Basel de 2019 e vendida por US$ 120 mil.
Bem, que sejamos, então, como o selvagem de Huxley.
Que nos sobrem Homero, Dante, Virgílio, Shakespeare e a beleza da arte verdadeira, que a política do dia-a-dia repudia e pode até querer censurar.
A riqueza desse mundo selvagem é melhor e mais verdadeira do que as novidades da civilização que se perdeu.