A morte convida-nos a uma dança, e dela, ainda que muitos tentem, não há quem escape. Quanto mais nos conformarmos com isso, mais seremos capazes de viver verdadeiramente.
— Quem é você?
— Sou a morte.
— Veio me buscar?
— Ando com você há muito tempo.
— Eu sei.
— Está preparado?
— Meu corpo está, mas eu, não.
[A morte avança]
— Espere!
— Está bem, mas não posso adiar.
— Você joga xadrez?
O diálogo acima é de uma das primeiras cenas do filme O sétimo selo, no qual Ingmar Bergman retrata… uma dança — sim, uma dança.
Mas essa é uma dança diferente: ela não segue uma música nem passos coreografados, e dela ninguém pode escapar: os seus participantes sequer têm a opção de declinar o convite do seu condutor, que é irresistível e irrefreável.
E, todos os dias, almas são cortejadas para dela participar, deixando as cadeiras da vida e entrando nos salões — ou, se preferir, nas pistas — da eternidade.
É da dança da Morte.
Última cena do filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman (1957)
Sim, o findar da vida terrena é a última dança de nossas vidas e matéria de estudo, reflexão e assunto nos mais diversos meios.
Homero, Dante, Machado de Assis… incontáveis artistas já criaram obras que aludem à morte.
Um registro artístico que ficou marcado numa geração inteira sobre o assunto, foi justamente O sétimo selo.
Ali, retornando após uma série de batalhas, o soldado Antonius Block se encontra, em uma praia, com a Morte, a quem já havia enviado dezenas de almas. Sabendo ser agora a sua hora, propõe a ela um desafio: uma partida de xadrez.
Caso vencesse a partida, a Morte desistiria de sua alma. Caso perdesse, aceitaria seu destino.
…o medo que sentimos da morte não é exatamente do fim da vida, mas de sermos esquecidos..
A postura do soldado representa perfeitamente o que nenhum de nós deve tentar fazer. Afinal, como disse o grande Heitor, príncipe de Tróia, à sua esposa Andrômaca:
“… digo-te não existir homem algum que à morte tenha fugido, nem o covarde, nem o valente, uma vez que tenha nascido.” (Ilíada, Canto VI, 488).
Eis a dança inescapável que chama ao baile os soldados e os inválidos, os monges e os ateus, os santos e os pecadores.
E por que é tão repreensível negá-la? Por que não podemos desafiá-la a uma disputa?
Porque, gostando ou não, ela é a grande e única certeza dessa vida.
É o que de cada finado se pode dizer, como Chicó, em O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna:
“Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho […], porque tudo o que é vivo, morre!”
É o que os monges têm como mote:
“Tudo é incerto, somente a morte é certa. Por isso, ‘memento mori’!”
É também a linha final do visível onde, como nos ensinou Mallarmé, em O Túmulo de Edgar Allan Poe, as transformações se acabam e podemos ser, enfim, quem sempre fomos.
Porém, é o pensar na morte que faz com que amemos os que estão ao nosso redor com perfeição; faz com que cumpramos os nossos deveres, principalmente pelos que mais dependem de nós, pois, como diz a frase atribuída a G. K. Chesterton: “O modo para se amar qualquer coisa é perceber que ela pode ser perdida”.
Com o pensar na morte é que podemos viver de forma plena. Foi o que concluíram Santo Agostinho, Sêneca e até mesmo Frank Sinatra — ou você nunca percebeu que My Way é uma música sobre a morte de um homem que aceitou a vida como ela é?
No fundo, o medo que sentimos da morte não é exatamente do fim da vida, mas de sermos esquecidos, de não termos dado valor ou deixado algum legado, como nos recorda o maior filósofo espanhol do século XX, Ortega y Gasset:
“Apenas diante da morte as ideias têm valor.”
O problema é que, parafraseando Santo Agostinho, fazemos o impossível para morrer um pouco mais tarde, e pouco ou nada fazemos para não morrer para sempre.
Por quê?
O Papa Bento XVI, em 2013, nos ensinou:
“As respostas são múltiplas: temos medo da morte porque temos medo do nada, este partir rumo a algo que não conhecemos, que nos é desconhecido. E então em nós existe um sentido de rejeição, porque não podemos aceitar que tudo quanto de belo e grande foi realizado durante uma existência inteira seja repentinamente eliminado e precipite no abismo, no nada. Sobretudo, nós sentimos que o amor evoca e exige a eternidade, e não é possível aceitar que ele seja destruído pela morte num só instante.
Além disso, temos medo da morte porque, quando nos encontramos próximos do fim da existência, há a percepção de que existe um juízo sobre as nossas obras, sobre o modo como conduzimos a nossa vida, principalmente sobre aqueles pontos de sombra que, com habilidade, muitas vezes sabemos anular ou tentamos remover da nossa consciência.
Esta Comemoração de todos os fiéis defuntos diz-nos que somente quem pode reconhecer uma grande esperança na morte, pode também levar uma vida a partir da esperança. Se nós reduzirmos o homem exclusivamente à sua dimensão horizontal, àquilo que se pode sentir de forma empírica, a própria vida perde o seu profundo sentido. O homem tem necessidade de eternidade, e para ele qualquer outra esperança é demasiado breve, é demasiado limitada.”
Que, ao nos encontrarmos com a morte e nos vermos presos a seus braços para uma última dança, depois de termos enfrentado a dura guerra, que é a vida, possamos olhá-la nos olhos e dizer:
Seja bem-vinda! Esperei por ti todo esse tempo de cabeça erguida. Cumpri o meu papel. Terminei a corrida e combati o bom combate. Para onde irás me levar?