1984, de George Orwell é um retrato assustador de um futuro sem liberdade, sem pensamento, sem tradição e sem identidade para o qual podemos estar caminhando, se não fizermos exatamente o contrário do que nos pedem as idéias dominantes.
Este é um artigo sobre totalitarismo, mas, diferentemente do que possa o leitor esperar, não trataremos de algum dos conhecidos regimes totalitários do século XX, das suas demonstrações públicas de força, tampouco das suas respectivas ascensões e quedas.
Trataremos, na verdade, do ser humano, mais especificamente, daquilo que lhe caracteriza e lhe diferencia de toda a criação natural, e que consiste na chave primordial para a sua elevação, como também para a sua submissão total a qualquer regime que dela saiba fazer “bom” uso: a inteligência.
Para isso, recorramos a Aristóteles, que em uma única sentença, escrita no século IV a.C., nos dá todo o material de que precisamos para começar a refletir sobre o nosso assunto.
Já na primeira frase da sua Metafísica, ele declarava: “Todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento.”
O que isso quer dizer? E mais: o que isso tem a ver com totalitarismo?
Como dissemos, é a inteligência a marca distintiva do homem ante toda a criação natural. Ela é o motor mais propriamente humano, graças ao qual todos ansiamos pela posse intelectual da verdade sobre as coisas.
É esse desejo que move nossas idéias, nossa imaginação, nossa curiosidade.
É, por exemplo, a posse intelectual do conceito de justiça que permite a ordem na ciência do Direito.
É a posse intelectual do conceito de transcendência que permite aos mártires morrerem por sua fé.
E por isso pereceram os totalitarismos baseados unicamente sobre a força, pois não destruíram justamente a maior força do homem: o pensamento, dom de Deus ao ser humano racional.
Mas não demoraria até que a lição fosse aprendida e que surgisse um novo tipo de totalitarismo que se utilizasse precisamente do enfraquecimento dessa força como seu principal meio de ação.
Um novo modelo de cerceamento, diferente dos regimes totalitários do século XX, que, inclusive, fora previsto por George Orwell no seu 1984 e do qual podemos ver sinais claros de êxito em nossos tempos.
A guerra moderna contra o pensamento precisa ser vencida pelo resgate da inteligência, pois é ela a nossa força natural.
Foi no Grand Hotel Abismo que um grupo de intelectuais poderosos — e muito, muito ricos — se reuniu para entender quais métodos usariam para que, fazendo as pessoas pararem de pensar, as tornassem mais animalescas e coniventes às ideologias totalitárias.
Fundava-se ali o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt — o laboratório que iria implementar no Ocidente, através da cultura, o totalitarismo das idéias.
Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt
Theodor Adorno, Max Horkheimer, Friedrich Pollock, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Erich Fromm, Jurgen Habermas: todos esses nomes, além de outros, reuniram-se e transformaram o hotel comprado por eles no epicentro do marxismo cultural.
Suas idéias são presentes, vivas em nossos dias e muito, muito semelhantes ao que Orwell relatou em seu livro.
Em 1984, um dos métodos pelo qual o governo controla seus cidadãos é chamado de “Novilíngua”, um idioma que reduz ao máximo a quantidade e o sentido das palavras, que agora passarão a ser de número e sentido rigidamente definidos.
O objetivo era limitar a capacidade de pensar ou de exprimir pensamentos contra a ideologia do Ingsoc (Socialismo Inglês — nome dado por Orwell ao regime que atuava na história de 1984), evitando o que, em Novilíngua, se chama crimidéia, o crime de idéia — pensar contra e fora da ideologia.
Um dos personagens, Syme, explica a Winston, o protagonista, os objetivos da Novilíngua:
“Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. […] Cada ano, menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre uma pausa menor. Naturalmente, mesmo em nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer uma crimidéia. É apenas uma questão de disciplina, controle da realidade. Mas no futuro não será preciso nem isso. A Revolução se completará quando a língua for perfeita. Novilíngua é Ingsoc e Ingsoc é Novilíngua — agregou com uma espécie de satisfação mística. — Nunca te ocorreu, Winston, que por volta do ano de 2050, o mais tardar, não viverá um único ser humano capaz de compreender esta nossa conversa?”
E no Apêndice que escreveu sobre a Novilíngua, Orwell afirma:
“O objetivo da Novilíngua não era apenas oferecer um meio de expressão para a cosmovisão e para os hábitos mentais próprios dos devotos do Ingsoc, mas também impossibilitar outras formas de pensamento. O que se pretendia era que, tão logo a Novilíngua fosse adotada definitivamente e a Antiga Língua esquecida, qualquer pensamento herético, isto é, divergente dos princípios do Ingsoc, fosse literalmente impensável, ou pelo menos até o limite em que o pensamento depende de palavras. Seu vocabulário fora construído de modo a fornecer a expressão exata — e freqüentemente de um modo sutil — a cada significado que um membro do Partido quisesse expressar, excluindo os outros significados, bem como a possibilidade de chegar a eles por métodos indiretos. Isso era obtido em parte pela invenção de novas palavras, mas principalmente pela eliminação de palavras indesejáveis e pelo esvaziamento, das palavras restantes, de qualquer significado heterodoxo e, tanto quanto possível, de todos os significados secundários, quaisquer que fossem eles.”
1984 é um retrato dos nossos tempos.
Percebe alguma relação disso com nossos tempos?
Expressões como “preconceito”, “crime de ódio”, “fake news”, “fascismo”, “genocídio”, “negacionismo” perderam seus significados originais simplesmente por não estarem de acordo com o pensamento dominante.
Foram ressignificadas e passaram a ser usadas contra qualquer pessoa que tente “pensar fora da caixa”.
Mudando o vocabulário e o significado das palavras, perdemos contato com a sabedoria que o ser humano construiu até aqui. Nos esquecemos de Camões, Dante, Hugo de São Vitor, Aristóteles…
O desejo de conhecer ainda existe, mas com a linguagem limitada, não temos as vias para isso.
Outro método do partido Ingsoc também se parece muito com nossos dias: o “crimedeter”.
“Crimedeter é a faculdade de deter, de paralisar, como por instinto, no limiar, qualquer pensamento perigoso. Inclui o poder de não perceber analogias, de não conseguir observar erros de lógica, de não compreender os argumentos mais simples e hostis ao Ingsoc, e de se aborrecer ou enojar por qualquer tentativa de pensamentos que possa tomar rumo herético. Crimedeter, em suma, significa estupidez protetora.”
Estupidez protetora é aquilo sobre o que diversas vezes já escrevi: a imbecilização do homem para torná-lo uma marionete a serviço da ideologia.
Por fim, apesar de existirem outros métodos utilizados por Ingsoc que atuam em nossas vidas, existe um que é ainda mais assustador, pois faz com que nos esqueçamos de quem somos: o controle do passado.
“Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”, é o ditado do Ingsoc.
Reescrever os artigos jornalísticos, os registros históricos, as manifestações artísticas é a chave do controle.
Como afirma um dos personagens a Winston:
“A realidade só existe no espírito, e em nenhuma outra parte. Não na mente do indivíduo, que pode se enganar, e que logo perece. Só na mente do Partido, que é coletivo e imortal. O que quer que o Partido afirme que é verdade, é verdade. É impossível ver a realidade exceto pelos olhos do Partido.”
E como fazem isso nos nossos dias? Bem, basta olhar.
Olhe para o que se ensina nas faculdades e veja o que ensinam sobre a nossa história.
Olhe para a literatura, o cinema, a música…
Nossos valores, pouco a pouco, vão sendo combatidos, reescritos e esquecidos.
Aí está o grande alerta orwelliano para as nossas vidas.
A guerra moderna contra o pensamento precisa ser vencida pelo resgate da inteligência, pois é ela a nossa força natural.
Ao final de tudo, espero que Orwell esteja errado quando disse que “o retrato do futuro é uma bota prensando o rosto humano para sempre”.