O necrológio é um exercício essencial para o encontro de si mesmo, pois ele dá a consciência de que, ao mesmo tempo em que a morte é o fim da vida, a sua consideração pode ser o ponto de partida para o encontro daquilo que por ela poderá ser eternizado.
Hoje, quero convidar o leitor a fazer uma visita ao seu eu do futuro.
É muito comum que as crianças pensem o que serão quando crescerem. Pensam em heróis, bombeiros, princesas, policiais, mães, professores…
As crianças pensam o que querem se tornar e brincam de ser o que sonham para si mesmas.
Mas, chega um momento em que não se pensa mais tanto assim. O necrológio nos coloca na posição das crianças, mas sem fantasias.
A maioria das pessoas não tem um projeto de vida; e se não há um plano de vida, não há uma orientação, não há um norte, não há lugar para chegar.
Essa falta de um rumo na vida pode ser comparada a alguém que embarca em um navio sem saber aonde está indo.
Se você não sabe quem quer ser, como julgará suas próprias ações e decisões?
O necrológio cria um personagem ideal, o modelo que você mais almeja se tornar. Essa sua melhor versão possível será o juiz das suas ações.
Vou explicar melhor.
O necrológio descortina a consciência para aquilo que nos move…
Esse é um exercício que o Professor Olavo de Carvalho ensinava em uma das primeiras aulas do seu Curso Online de Filosofia e que acabou ficando muito famoso. Ele consiste em que você escreva, como se fosse um terceiro — um amigo, um familiar ou alguém próximo —, um texto que contemple as suas características mais notáveis e os feitos mais marcantes da sua vida.
Basicamente, você deve se imaginar à frente, o que você gostaria de ser quando morrer. Dito de outro modo, de maneira bastante realista e sincera, você deve perguntar-se: “Quando eu tiver morrido, como quero que as pessoas lembrem-se de mim?”
Fazendo isso, começa-se a perceber o que realmente importa na vida: “Não, eu não quero que as pessoas se lembrem de mim dessa forma. Eu quero que lembrem de mim assim, assado, que fiz isso, que fiz aquilo, que eu sou essa pessoa e não outra”.
Como Sócrates dizia: “A vida deve ser refletida, e você deve refletir quem você é”. E Louis Lavelle falava que a morte vai fechar o seu molde, de modo a eternizar a pessoa que se é.
Ou seja, a morte eterniza quem você é no momento em que morre.
Com isso em mente, encontrando o eu ideal, encontra-se um caminho, uma orientação na vida.
E confrontando esse eu ideal com o eu atual, pode-se reordenar as ações e pensamentos, de modo que a nossa imagem do futuro oriente a nossa imagem real, fazendo com que aquilo que antes era abstrato adquira a consistência da realidade.
Mas, lembre-se, o mais importante é ter consciência de quem se é, e não necessariamente do que se fez. As características do seu ser durante a sua história de vida são mais importantes do que os grandes feitos da sua vida, porque, afinal, você é uma pessoa, não uma ocupação.
Por fim, deixo aqui, para reflexão e, também, inspiração para um necrológio pessoa, um famoso texto que está no livro Da Intimidade Espiritual, de Louis Lavelle, traduzido pelo professor Olavo:
“Há na vida momentos privilegiados em que parece que o universo se ilumina, que a nossa vida nos revela sua significação, que queremos o destino mesmo que nos coube como se nós mesmos o tivéssemos escolhido; depois o universo volta a fechar-se, tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tateando num caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo aos nossos passos. A sabedoria consiste em salvaguardar a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver e fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito.”
O necrológio descortina a consciência para aquilo que nos move, de modo que podemos, racionalmente, optar por viver em função disso e dispor todo o nosso espírito em seu favor.
Assim, tomamos posse integral da nossa própria identidade e daquilo que a enche de sentido.