Como a queda do homem foi responsável por instaurar a sociedade da desconfiança e fazer com que todo os rumos da política até o presente seja uma tentativa de recuperar a confiança no outro e restabelecer a veracidade das relações humanas?
Aristóteles comprova que o homem é animal social e político ao demonstrar que ele, necessariamente, deve estar unido a outros para conseguir os bens de que precisa para viver. E esses bens podem ser materiais, mas também espirituais.
Como os homens não são todos iguais, nem possuem todos os talentos, todos a mesma inteligência ou os mesmos gostos, é necessário que ocorra entre eles um intercâmbio, e assim, se formam as famílias e as comunidades.
Entretanto, na vida em sociedade, cada família ou grupo possui interesses diferenciados e vocações distintas, que dirigem o seu foco de ação. E para que esses interesses diferenciados não entrem em conflito é que existe a política, que os concilia.
Através da política, os bens obtidos por cada pessoa, família ou comunidade são coordenados, harmonizados: é o que se chama bem comum. Por isso, Santo Tomás diz que o propósito do governante é garantir a paz do povo, o que possibilita o bem comum.
Essa é a natureza do homem. Mas sendo assim, por que, então, existem o crime, a violência, as guerras, a corrupção? Por um único fator: a Queda.
É preciso compreender, de uma vez por todas, que não há como considerar o problema político sem perceber que, após o pecado, o homem está decaído. A Queda do homem é o abandono de sua harmonia primeira com Deus, que “passeava no Jardim” (Gn 3,8), convivia com o homem. Privado disso por sua escolha, a convivência com o próximo, por conseqüência, também se envenena.
Essa é a nossa condição real: privação. “A terra te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra”, diz o Senhor, após o crime de Adão e Eva (Gn 3,17-18).
Por essa razão, é impossível haver uma política que se encerre em si mesma, como se a condição do homem pudesse ser redimida pelo consenso puramente humano, pelo diálogo terreno. Esse diálogo foi praticado por Caim e sabemos o que houve com Abel.
Para continuar nossa reflexão, gostaria de me ater um pouco ao início do relato do Gênesis sobre a Queda. Ele começa do seguinte modo:
“A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse à mulher: ‘É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?’” (Gn 3,1)
Perceba que a intervenção da Serpente inicia-se com um questionamento. Mas não se trata de uma simples pergunta: é uma pergunta que traz, internamente, uma mentira, formulada de maneira capciosa.
A Serpente sabe que não há uma proibição de Deus para comer de toda árvore do jardim, ou seja, essa proibição total não é um dado da realidade. Mas ela indaga, precisamente, se isso é verdade: não pergunta se Deus proibiu comer daquele fruto apenas, mas de todo fruto do Jardim. A realidade é invertida na própria questão.
É evidente que o questionamento da Serpente, aparentemente inócuo, não tinha o propósito de saber até onde iam as proibições de Deus, mas semear a dúvida sobre a única limitação que Ele impusera ao homem.
E o faz com sucesso, pois Eva não responde apenas “não, não é verdade”, mas detalha o motivo da proibição apresentada por Deus:
“Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais’.” (Gn 3,2-3)
Isso demonstra que Eva não se perguntou apenas se Deus proibira tudo, mas por que Ele proibiu, entre tudo, apenas aquilo.
Só a política que transcende a si mesma e eleva os olhos a Deus é capaz de atingir o bem…
Se a política verdadeira, como vimos, é aquela que busca a paz e o bem comum, a política da Serpente é outra: ela busca exclusivamente o bem individual sem consideração do bem comum; ela busca aquele fruto, somente o que fora proibido, não os frutos de todas as árvores, com que Deus agraciara o homem. ⠀
Apple Trees in Blossom, Charles-François Daubigny (1862)
Na primeira sociedade humana — uma família —, formada por Adão e Eva, houve a inoculação de um questionamento a uma Lei de Deus sobre os bens que se deve buscar.
Deus pusera à disposição do homem os bens e, entre todos eles — todos! —, o homem estava completamente livre para escolher. Mas a Serpente move seu questionamento apenas sobre o objeto da Lei divina, levando o homem a uma inversão das prioridades: um fruto, o proibido, ao invés de todos.
Esse é o mistério da desordem social, que, em primeiro lugar, é uma desordem espiritual: a inversão ocorre, antes de tudo, na cabeça dos Primeiros Pais, que cogitam desobedecer à Lei Divina. E, depois de cogitar, decidem desobedecer.
Note como tudo começa com o pensamento. As idéias possuem conseqüências na vida do homem — a política é parte da vida, intrinsecamente ligada à moral (como agir para fazer o bem). E foi uma idéia, baseada numa mentira, que levou a uma decisão errada.
Isso quer dizer que a falta de um critério objetivo sobre o Bem e o Mal, tal como a Realidade nos mostra, conduz a uma mentira interior, a uma deturpação da Realidade: o homem passa a crer que ele, e não Deus, decide o Bem e o Mal.
Por isso a Serpente responde a Eva:
“Oh, não! vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.” (Gn 3,4-5)
Quando se perde o realismo na consideração do que é bom e do que é mal, o que se torna a Lei? A Lei de Deus, inscrita na Criação — aquela Lei que Eva enunciou antes —, não é mais a Verdade do homem. Esse critério objetivo se perde e, em seu lugar, reina o subjetivismo.
É precisamente o que origina uma ideologia: o abandono da realidade e o apego exclusivo a uma idéia particular, que o homem deseja que seja “a realidade”. Mas, por não ser, muitas vezes deseja forçá-la, a ferro e fogo, para que sua vontade se faça verdade e ele seja “deus” no mundo.
Assim pensam os tiranos de todos os tipos e tempos.
Adam and Eve, Eugene Delacroix (1840)
Ainda no terceiro capítulo do Gênesis, os versículos 6 e 7 relatam:
“A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. Então os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram tangas para si.”
A consideração racional de Eva, fundada na mentira da Serpente, engana-se sobre o bem a buscar e deseja “ser como Deus”, determinar o que é o Bem e o que é o Mal.
Eva já peca, na razão, ao consentir desobedecer à Lei de Deus e, depois, ao decidir praticar o ato. Perceba como ela mente para si mesma sobre o “bem” meramente aparente: é um fruto agradável, bonito, que vai abrir a inteligência…
Há toda uma justificação para dar legitimidade ao ato. Afinal, uma Lei estava sendo quebrada e era necessário garantir a legitimidade da quebra por uma “lei maior”, que a superasse.
E isso é apresentado a Adão, que come do fruto. Não é errado imaginar que houve um diálogo, uma justificação intelectual, que também convence Adão a mentir para si mesmo.
Então, da mentira, surge a primeira barreira social: a desconfiança, a vergonha do outro. As tangas de folhas de figueira, com as quais o homem se cobre, marcam o momento em que o outro, aquele com quem ele se relaciona, não é mais digno de confiança — se eu minto para mim mesmo, minto para o outro, e o outro também mente para mim. Precisam cobrir-se, ocultar quem realmente são.
A sociedade da desconfiança se instaura e todo o rumo político posterior do homem é uma tentativa de recuperar aquela confiança no outro, restabelecer a veracidade: os costumes, as leis, os contratos… Tudo pretende restaurar uma confiabilidade, uma segurança perdida, pois a mentira adoeceu a relação com o outro.
Logo, a política que não se pauta pela Verdade, mas por estratagemas de enganação para submeter o outro, como propunha Maquiavel, é uma política doentia.
Só a política que transcende a si mesma e eleva os olhos a Deus é capaz de atingir o bem comum dos próprios homens. Por isso, Cristo resumiu os Mandamentos assim: Amarás a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo (Mc 12,29-31).