A sensação geral de confusão e incompreensão em relação à série “The Young Pope” não deve espantar: é que não se trata de um seriado televisivo comum; por isso, precisa ser interpretado pelas chaves corretas.
Ensaio publicado originalmente no blog Homem Eterno, em 12 de abril de 2017.
Adaptação: Equipe Prof. Taiguara Fernandes
Uma crítica de cinema, nos dias de hoje, restringe-se a uma ou duas páginas, quando muito. Fala-se de como o filme terá sido fiel ao livro em que se inspirou, comenta-se a atuação pueril ou genial deste ou daquele figurão de Hollywood, segue-se algum elogio à fotografia e ao figurino — ou um muxoxo desaprovador — e encerra-se falando da bilheteria.
Em todo este roteiro, mais ou menos comum, não se toca, jamais, nos elementos de narrativa ou — o que seria muito para se desejar — nos símbolos e mitos que serviram de arcabouço à obra cinematográfica. Pudera. Como afirma Mario Vargas Llosa, em ensaio bastante citado neste:
Não surpreende que, na era do espetáculo, no cinema os efeitos especiais tenham passado a ter um protagonismo que relega a segundo plano temas, diretores, roteiros e até atores. […] [I]sso se deve a uma cultura que propicia o menor esforço intelectual, a ausência de preocupação, angústias e, em última instância, pensamento, em favor da entrega em atitude passiva àquilo que o agora esquecido Marshall McLuhan – sagaz profeta do caráter que a cultura de hoje adquiriria – chamava de “banho de imagens”, essa entrega submissa a emoções e sensações desencadeadas por um bombardeio inusitado e muitas vezes brilhantíssimo de imagens que chamam a atenção, embora, com sua natureza primária e passageira, embotem a sensibilidade e o intelecto público.
(LLOSA, Mario Vargas. A Civilização do Espetáculo – Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Ed. Objetiva, versão eletrônica para Kindle; Posições 455-460).
Não é possível falar de narrativa, de símbolos, dos efeitos psicológicos, em obras completamente vazias disso tudo, que se contentam com o mero gozo dos sentidos ou a pornochanchada barata.
No Brasil, então, a crítica normalmente se apegará a algum aspecto sociológico marxista — o velho conflito entre a elite e os pobres — ou a algum significado erótico oculto: política ou sexo, as duas únicas matizes do pensamento nacional.
No seu ensaio sobre o filme “O Silêncio dos Inocentes”, Olavo de Carvalho já denunciava:
Este livro pertence a um gênero anacrônico, e certamente suscitará alguma estranheza da parte do público acostumado a receber, sob o rótulo de “crítica de cinema”, coisa inteiramente diversa. É que, quando eu tinha dezoito anos – há duas décadas e meia, e num outro Brasil –, não era pecado escrever ensaios compridos a respeito de um filme; não era pecado pensar, investigar, tentar aprofundar o sentido de um filme. Ensaios como este eram a toda hora publicados na imprensa […] de todos quantos se dedicavam ao ofício de ajudar-nos a compreender a arte do cinema; ofício que hoje sofre o estigma da reprovação, exceto quando exercido discretamente e dentro do gueto universitário. As páginas de crítica nos jornais são para outra coisa, e pensar em público tornou-se indecente. Lamento ferir o decoro: é que, decididamente, pertenço a outra época.
(CARVALHO, Olavo de. A dialética simbólica – Estudos reunidos. Campinas, SP: Vide Editoral, 2015; p. 147).
Não estranha que as reações ao seriado The Young Pope, do cineasta italiano Paolo Sorrentino, tenham seguido por aqui — e mesmo em algumas críticas estrangeiras — os mesmos cânones limitadores da compreensão da arte do cinema. As obras de um diretor como Sorrentino, contudo, não se enquadram na caixinha hollywoodiana de clichês prontos e arrumados.
Em The Young Pope, um amplo conjunto de aspectos sociológicos e religiosos, que estão entre as questões mais candentes da sociedade atual, encontraram uma canalização simbólica bastante densa. Para entendê-los, não bastaria um comentário apenas sobre o seriado; foi preciso investigar como estas questões vinham sendo tratadas em outras obras de Sorrentino — especialmente o filme pelo qual é mais conhecido atualmente, La Grande Bellezza. Este é o desafio que empreendi neste ensaio.
Também lamento ferir o decoro: este ensaio é anacrônico. Longo, será dividido em duas partes. Na primeira, tentarei colocar o seriado no contexto de duas outras obras de Sorrentino, para compreender alguns dos temas sociológicos e religiosos implicados em The Young Pope. Na segunda, serão tratados aspectos simbólicos e míticos da série. Seguirei, nos dois casos, o método desenvolvido e já experimentado com sucesso pelo Professor Olavo de Carvalho em seu ensaio.
De The Young Pope, pode-se fazer avaliação semelhante àquela que o filósofo fez de “O Silêncio dos Inocentes”: “Como toda grande arte, este filme desencadeia consequências que se prolongam para muito além do gozo estético imediato e reverberam em benefícios psicológicos de longa duração” (p. 149).
Portanto, a sensação geral de alvoroço e incompreensão não deve espantar: é que não se trata de um seriado televisivo comum; por isso, precisa ser interpretado pelas chaves corretas.
1. UMA CONTRADIÇÃO NA NOITE
Eles devem encontrar Deus no frio e na escuridão da noite, como eu (Lenny Belardo, The Young Pope)
Nem por dentro, nem por fora, não encontro ninguém a quem recorrer (Santa Teresa de Calcutá)
Minha reação ao assistir ao episódio inicial do seriado The Young Pope foi, como a de muita gente, inquietante. A série contribui para isso, ao abrir com um discurso absurdo do Papa Pio XIII (Lenny Belardo, a personagem principal, interpretada por Jude Law), repleto de modernismo e politicamente correto, em que conclama a uma revisão da doutrina, desde masturbação até aborto.
Lenny Belardo emerge de uma montanha de bebês abandonados — os filhos da geração de 68 — trajado em vestes papais e caminha ao largo de uma colunata, que lembra aquela de Bernini na Praça de São Pedro. A cena é cara ao diretor Paolo Sorrentino: em Youth (filme de 2015, com Michael Caine e Harvey Keitel), o maestro Fred Ballinger, personagem principal, interpretado por Caine, também tem um sonho em que caminha ao largo de uma colunata semelhante e vê a juventude passar diante de si, na forma de uma mulher sensual (a cena tornou-se o cartaz do filme); água começa a subir de todos os lados e Ballinger se afoga na depressão da própria velhice.
Em Sorrentino, o caminho ao largo da colunata parece significar o transcurso da própria vida: é entre aqueles dois braços de colunas simétricas e intransponíveis que a existência se desenrola, para Fred Ballinger em Youth e para Lenny Belardo em The Young Pope — muitas vezes a cena é repetida para o Papa, em momentos cruciais da série, sempre como uma ilusão, um pensamento profundo, um estado de espírito. Da mesma forma como Ballinger vê a juventude passar por si, para ir embora, o órfão Belardo jamais consegue alcançar os seus pais, que o abandonaram -– mesmo quando isso ocorre, logo se mostra que é uma ilusão dentro da ilusão. Ao longo da vida real, estão sempre a passar as propostas de vida alternativa (o conhecido “e se…”) — ou, como no verso de Bandeira, “a vida que poderia ter sido e não foi”. Mas é preciso olhar para essas propostas e deixá-las passar, pois a vida real é uma só e o caminho continua adiante. Apesar de estas possibilidades de caminhos diversos deixarem suas marcas, serem elas mesmas dados da realidade, prender-se a elas geraria apenas um turbilhão de esquizofrenia, um desvio do sentido real da existência.
Em outro filme de Sorrentino, bastante conhecido, La Grande Bellezza (2013), com Toni Servillo no papel do escritor italiano Jeb Gambardella, a mesma representação da colunata aparece, mas de uma forma diferente.
Gambardella, no meio de uma festa repleta de velhos luxurientos e prostitutas se exibindo, destaca-se de um corredor de pessoas dançantes e posta-se ao centro; fuma um cigarro; o barulho silencia e as pessoas, simetricamente dispostas, parecem mais lentas, mais imóveis (o mesmo tipo de cena ocorre antes do primeiro discurso de Lenny Belardo, quando ele transita entre os Cardeais e parece flutuar entre obstáculos estáticos); Gambardella, então, começa a refletir sobre a própria vida.
O escritor vivera sempre em busca do espetáculo, do glamour da high society romana, de modo que faz sentido que a sua própria colunata seja composta por um corredor de dançarinos ignóbeis: aquela é a sua vida.
Tudo isso estou escrevendo apenas sobre a cena inicial de The Young Pope, o que revela que a profundidade simbólica da obra é muito maior do que aparenta à primeira vista. Avaliações apressadas, que tentam rotular o seriado de Sorrentino como “católico” ou “anti-católico”, revelam muito mais sobre a incapacidade do crítico de perceber as várias matizes de significado exploradas a mão cheia pelo diretor italiano do que sobre a obra em si mesma.
Voltando ao discurso impactante do recém-eleito Pio XIII, enumerando uma lista de “esquecimentos” da Igreja – apenas reivindicações progressistas – e afirmando que a única via da felicidade é a total liberdade, logo descobrimos que tudo não passava de um pesadelo de Belardo.
Ao contrário, a personagem do Papa contrasta completamente com o progressismo do primeiro discurso ilusório e chocante.
Lenny Belardo, um jovem Cardeal americano, de 47 anos, era Arcebispo de Nova York e fora eleito Papa, ao que parece, por uma maquinação do Cardeal Secretário de Estado, Angelo Voiello, contrariando um combinado prévio com o Cardeal Michael Spencer, outro americano, mentor de Belardo, que deveria ter sido eleito Papa. Um grupo de Cardeais conversa no primeiro episódio e define Belardo como um “fantoche telegênico”: “Belardo tem o cargo, mas Voiello é quem dá as cartas”. O objetivo da eleição de Lenny, portanto, era criar um Papa inexperiente e controlável por uma Cúria Romana corrupta e progressista.
Apesar da maquinação de Voiello sempre ser mencionada, não fica muito claro se o Secretário de Estado descumpriu seu acordo com Spencer. Voiello o nega por várias vezes, afirmando que, subitamente, os votos começaram a se dirigir a Belardo: “o Espírito Santo soprou”, ele diz. A série não deixa isso muito claro, mesmo quando Pio XIII coloca Voiello contra a parede; seja como for, não é demais supor que os votos realmente tenham ido de forma espontânea para Belardo e Voiello tenha visto nisso uma possibilidade ainda melhor do que a eleição de Spencer, um Cardeal mais velho e experiente (e que, por isso mesmo, poderia descumprir sua parte do acordo de manter o poder nas mãos do Secretário de Estado). O seriado, a todo momento, tenta mostrar a eleição de Pio XIII como um fato da Providência; seu Pontificado é um milagre. Voiello pode ter apostado errado ao aduzir que o Papa jovem seria controlável: se o Espírito Santo soprou, então nada está sob o controle das maquinações. Na verdade, Voiello sofreu um tiro no pé – voluntário ou involuntário, pouco importa.
A personagem de Pio XIII é das mais interessantes. Muitos tendem a interpretá-la à luz de um trauma psicológico provocado pelo abandono dos pais e a consequente orfandade. Contudo, o psicologismo é rejeitado como chave interpretativa já no primeiro episódio, pela boca da Irmã Mary, a freira que criou Lenny e tida por sua mãe adotiva: assim que Belardo tenta trazer o assunto dos pais, Irmã Mary lembra-lhe que não há mais espaço para traumas psicológicos; ele agora é o Papa e Lenny Belardo deve morrer para que o Pai da Igreja viva. No terceiro episódio, é o próprio Papa a dizê-lo contra Michael Spencer, que tenta meter-lhe uma explicação psicológica do seu Pontificado: “corte a psicanálise barata”. O psicologismo não é a chave interpretativa da obra e os críticos que enveredaram por esta seara erraram fragorosamente.
Também é da Irmã Mary que nos vem a primeira pista sobre a personalidade de Lenny Belardo: ao reencontrá-lo no Vaticano pela primeira vez após a eleição, a freira o chama de “meu santo”. Um santo? Naquele momento, não sabemos se o qualificativo é uma avaliação objetiva ou apenas a condescendência de uma mãe adotiva. Mas o seriado tratará de responder a essa pergunta.
O primeiro episódio apresenta outras pistas: na primeira oração de Lenny mostrada na obra, o Papa utiliza as palavras de Cristo na Cruz (“por que me abandonastes?”) e reclama do “silêncio infinito de Deus” repetidas vezes. Para quem entenda um pouco de mística católica, a imagem do abandono do Crucificado e o símbolo do silêncio imediatamente remetem a um estado espiritual bastante conhecido entre os santos: a noite escura da alma.
São João da Cruz, no seu Tratado de La Noche Oscura del Alma, explica que a noite escura da alma surge quando Deus retira o homem do estado de principiante na fé para o estado contemplativo. Ora, quanto a alma principia na descoberta de Deus, é agraciada com muitas felicidades interiores, prazeres na oração, fervor; mas, continua São João da Cruz, todo esse fervor e deleite na oração acaba por gerar a soberba, a sensação de que “sou mais santo que o mundo inteiro”. Então Deus retira o deleite destas pessoas, para que a firmeza de sua fé seja fortalecida no silêncio e para que o sentimento de abandono espiritual destrua-lhe a soberba. O estado que estas almas se encontram é semelhante à agonia de Cristo no Jardim das Oliveiras ou ao seu abandono na Cruz, quando tudo se escurece, quando Ele indaga ao Pai: “Eli! Eli! Lama Sabachtani?”
Por muitas vezes Pio XIII aparenta não acreditar em Deus — ele mesmo o diz. Mas, de outro lado, se é constantemente aturdido por uma fé vacilante, pela sensação de que Deus não existe, é de uma firmeza inabalável ante as conspirações, as mundanidades, os modernismos e uma infindável monta de obstáculos que a toda hora tentam desviar-lhe da responsabilidade do Papado. Como alguém que não tenha fé em Deus é capaz de agir com tanta firmeza em nome de Deus e destinar todo o seu Pontificado a, como ele enuncia, “mostrar que Deus existe”?
É que não se trata de um ateísmo verdadeiro — muito pelo contrário. Trata-se de uma real noite escura da alma, que o faz não ver a Deus, não ver nada. A crítica que alguns fizeram — “é um Papa ateu” — é inteiramente desprovida de sentido e contradiz a própria vida da personagem, mostrada no seriado inteiro.
Santa Teresa de Calcutá
Santa Teresa de Calcutá tinha a mesma sensação de abandono, de escuridão tremenda, de silêncio infinito de Deus. Quando suas cartas foram reveladas, muitos fizeram a mesma avaliação de Madre Teresa: seria atéia. É que se costuma julgar o outro à luz da própria régua…
“O isolamento é tão grande. Nem por dentro, nem por fora, não encontro ninguém a quem recorrer. Ele tirou não somente as ajudas espirituais, mas até mesmo as humanas. […] Se há inferno, este deve ser um. Que terrível é estar sem Deus, nem oração, nem fé, nem amor”, escrevia Madre Teresa em carta de 1965.
(KOLODIEJCHUK, Brian. Madre Teresa – Venha, seja minha luz, Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008; p. 255).
A Santa, que vivera um período inicial de grande fervor espiritual, recebendo locuções interiores e visões do próprio Cristo, foi lançada numa longa noite escura da alma, o caso mais longo já registrado: 49 anos, de 1948 até a sua morte, em 1997.
Em suas cartas durante este período, Santa Teresa de Calcutá também relatava suas dúvidas interiores ante o “silêncio infinito de Deus”:
Com frequência pergunto-me o que realmente Deus obtém de mim neste estado, sem fé, sem amor, nem sequer em sentimentos. No outro dia nem imagina como me senti mal. Houve um momento, quando quase me recusei a aceitar. Peguei deliberadamente no Terço e, muito devagar, sem sequer meditar nem pensar, rezei-o lenta e calmamente. O momento passou, mas a escuridão é tão escura e a dor tão dolorosa. Mas aceito tudo o que Ele dá e dou tudo que Ele tira. As pessoas dizem que são atraídas para mais perto de Deus vendo a minha forte fé. Não é isto enganar as pessoas? Cada vez que quero dizer a verdade, “que não tenho fé”, as palavras simplesmente não me vêm, a minha boca permanece fechada. Porém, continuo ainda sorrindo para Deus e para todos (Carta de 1962; p.244).
Na minha alma não sou capaz de dizer como está escuro, como é doloroso, como é terrível. Os meus sentimentos são muito traiçoeiros. Tenho a sensação de “recusar Deus” e, contudo, o piro e mais difícil de suportar é este terrível anseio por Deus (Carta de 1964; p. 251).
A Vontade do Pai foi aquela terrível solidão no Jardim [de Getsêmani], na Cruz. Ele estava completamente só. Se formos verdadeiramente seguidoras de Jesus, também nós devemos ter a experiência da solidão de Cristo. Ele suou sangue. Foi tremendamente difícil para Ele passar pela humilhação de Sua Paixão. (Instruções da Madre às Irmãs Missionárias da Caridade, 15/02/1983; p. 295)
E, no entanto, a fé de Madre Teresa era inteiramente verdadeira: no silêncio infinito de Deus, ela duvidava de si mesma, sentia mentir e enganar, mas essa não era a realidade — sua fé era vivida, com dor e sofrimento, mas firmeza e obras, ainda que ela não tivesse sentimentos. “E, contudo, Padre, apesar de tudo isto, quero ser-Lhe fiel, quero esgotar-me por Ele, quero amá-lo não por aquilo que Ele dá, mas por aquilo que Ele tira” (1965, p. 255).
A personagem de Pio XIII reclama do silêncio infinito de Deus e, em sua confissão, afirma mesmo que não acredita em Deus ou que, talvez, Deus não se importe com ninguém. No entanto, é essa mesma personagem que, em seu primeiro discurso público como Papa, prega contra o esquecimento de Deus pelos homens e conclama violentamente a que os fiéis tenham interesse exclusivo em Deus, sejam próximos de Deus mais que de si mesmos e experimentem a solidão diante do Senhor. A mesma personagem de fé aparentemente vacilante no confessionário é a que desafia o primeiro-ministro italiano: “vou provar-te que Deus existe”. Falando ao Cardeal Michael Spencer, Pio XIII explica sua decisão de não aparecer ao mundo: “Ausência é presença. São os fundamentos do mistério”; as pessoas devem “encontrar Deus no frio e na escuridão da noite, como eu”. A referência ao próprio estado de espírito, neste ponto, é muito clara.
É igualmente curioso o uso constante do símbolo do deserto. A noite escura é definida por alguns autores místicos como um deserto espiritual. O símbolo do deserto aparece por diversas vezes na série, como o único lugar em que é possível encontrar a Deus. É no deserto que a noite é fria e escura, que o silêncio é infinito. Mas é para lá que Cristo se dirige para ser tentado; é o caminho do deserto que conduz o povo de Deus à Terra Prometida. Ketchikan, no Alaska, é o deserto de gelo para o qual o Papa envia o soberbo Cardeal Ozolins (que encontra Deus ali) e, posteriormente, o pedófilo Arcebispo Kurtwell, para puni-lo. Ao responder à primeira-ministra da Groelândia sobre o que haveria debaixo daquele país que nunca derrete, o Papa diz: “Por baixo do gelo pode haver Deus”. O mesmo símbolo do deserto está no seio estéril da personagem Esther.
“O inferno é o primeiro passo para o Paraíso”, afirma Belardo, lembrando a Divina Comédia de Dante. “Se há inferno, este deve ser um”, disse Madre Teresa de Calcutá.
Lenny Belardo vive em noite escura e, apesar das contradições internas de sua própria fé, sua firmeza de ação é inabalável. Ele vive a fé, mais do que a sente. Ele se coloca à inteira disposição de Deus. Em uma das cenas de oração de Pio XIII, pouco após ter confessado, enraivecido e soberbo, a Don Tommaso que não acreditava em Deus, Belardo aparece de joelhos no chão, braços abertos, profundamente arrependido do que dissera, numa agonia quase desesperadora, clamando por perdão a Deus e jurando-lhe que não, nada daquilo que dissera ao pobre Tommaso era verdade. Após a fragilidade, logo retoma a fortaleza marcante de sua personalidade.
Curiosamente, o Papa parece ter um certo desdém pelos sacramentos: celebrar o Batismo é um estorvo, o segredo da confissão é violado, a Missa é lugar para reprimendas severas a uma freira que chora a morte da irmã. Não fica muito claro se isso se deve à própria incompreensão de Sorrentino sobre a natureza dos sacramentos ou se é um dado referente à própria aridez espiritual do personagem, que será desenvolvido posteriormente. Mas é evidente que a relação conflituosa que Belardo tem com os sacramentos contribui para o seu vazio no deserto espiritual em que está jogado.
São João da Cruz, no Tratado da Noite Escura, afirma que as almas que se encontram neste estado não obtém nenhum consolo sensível nos Sacramentos; antes devem procurar, com humildade, crer na graça invisível que Deus lhes concede por meio deles.
Santa Teresa de Calcutá escreveu a Jesus, em 1959:
Não rezo mais: pronuncio palavras das orações da comunidade e tento tudo o que posso para obter de cada palavra a doçura que ela tem para dar. Mas a minha oração de união não está mais lá. Já não rezo mais. A minha alma não é ‘uma’ Contigo (p. 276).
Não é demais supor, pelos dados que a história nos fornece, que a escuridão em que Belardo se encontra seja tão grave e profunda que ele já não perceba o sentido verdadeiro dos Sacramentos. Se for isso, e não a incompreensão de Sorrentino, é um fator da soberba da personagem, o qual gerará ainda mais aridez e solidão, para que aprenda a ser humilde e confiar integralmente em Deus – de certa forma, há um avanço da personagem nesta confiança e humildade, ao longo dos dez episódios, que é notado pelos seus colaboradores mais próximos.
Pio XIII é um santo, com todas as contradições que a santidade pode encerrar. É profundamente homem, com todos os seus defeitos – e são muitos! – mas o teor da personagem é de inegável santidade. O seriado dará outros dados objetivos sobre isso.
“O que é você, Lenny?”, pergunta o Cardeal Spencer, no primeiro episódio. “Eu sou uma contradição”, responde Belardo, no confessionário. Mas em outra cena subseqüente, dirá: “Eu sou o Papa”. Internamente, uma contradição; externamente, o Papa. E é nesse jogo de tensões que se desenvolve a profundidade da personagem. O que é vida, aliás, senão um jogo de tensões profundas, que devem ser absorvidas pela pessoa e transformadas em sua própria substância?
2. UM PALCO PARA NADA
Não tenho imagem porque não sou ninguém (Lenny Belardo, The Young Pope)
Frivolidade, maneira de entender o mundo, a vida, segundo a qual tudo é aparência, ou seja, teatro (Mario Vargas Llosa)
Desde o início, um dos pontos mais interessantes do enredo de The Young Pope é a aversão do Papa Pio XIII ao espetáculo: ele simplesmente não quer aparecer aos fiéis, sequer para a bênção após a eleição, a qual é feita na escuridão, sem que ninguém possa ver-lhe o rosto; todos os fotógrafos do Vaticano são demitidos e retratos do Santo Padre são sumariamente proibidos; até mesmo o Angelus é rezado de costas para a Praça de São Pedro.
No segundo episódio, na audiência com a assessora de marketing do Vaticano, Lenny dá o tom: o Vaticano, para sobreviver, transformara o Papa num “astro de rock”; ele não se submeteria àquilo. “Não tenho imagem porque não sou ninguém. Só Cristo existe. Só Cristo. Eu não valho nada”, diz. “Treinei a vida toda para ser um Papa invisível”.
Acusado de cometer um suicídio midiático, Belardo não se importa: “Sou completamente indiferente às dúvidas e inquietações da mídia”, diz a Michael Spencer. “As únicas entrevistas que damos são para Deus”, afirma, em outro momento.
Neste ponto, a série é bem atual. Capta o completo descrédito em que caíram as grandes corporações midiáticas, hoje praticamente tomadas como parâmetro de discernimento do que não acreditar. Nos EUA, a palavra direta do Presidente Donald Trump tem mais valor para a população do que todos os jornalistas juntos, demonstram as pesquisas de opinião.
Paolo Sorrentino
Mas o tema em discussão é mais profundo e bastante querido a Paolo Sorrentino: trata-se do conflito entre a civilização do espetáculo e a conservação da consciência individual. Como continuar sendo uma pessoa num mundo em que só existe valor em aparecer para os outros? Hoje, quem não se exibe, existe?
É inegável que um vendaval de exibicionismo vazio – fomentado na mídia, nas redes sociais, nas colunas de fofoca — tem tomado conta da existência diária. As pessoas tornam-se mais amorfas, mais inexistentes, de tanto buscarem voluntariamente anular-se perante a aprovação alheia. Quem não aparece, não existe: a regra publicitária foi transformada em lei universal da existência humana. Os rostos individualizados se perdem; todos se revolucionam em propaganda barata, vazia, em exibicionismo do corpo, do sexo, da vida privada — numa massa disforme e sem cara.
Mario Vargas Llosa tem um livro a respeito: “A Civilização do Espetáculo — Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura”. Ao lê-lo, é impossível não encontrar relação entre a crítica do escritor e a crítica de Sorrentino em The Young Pope e La Grande Bellezza.
Comentando a notícia de que havia fotógrafos de plantão, durante a crise financeira de 2008, em busca de um suicida, Vargas Llosa registra muito do sentimento expressado pela personagem de Lenny Belardo ao abolir a imagem do Papa dos tabloides:
Vamos reter por um momento essa imagem na memória: uma multidão de fotógrafos, de paparazzi, espreitando as alturas, com as câmaras prontas, para captar o primeiro suicida que encarne de maneira gráfica, dramática e espetacular a hecatombe financeira que fez evaporar bilhões de dólares e mergulhou na ruína grandes empresas e inúmeros cidadãos. Não creio que haja imagem que resuma melhor a civilização de que fazemos parte (Posição 276).
E conceitua:
O que quer dizer civilização do espetáculo? É a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal. Esse ideal de vida é perfeitamente legítimo, sem dúvida. […] Mas transformar em valor supremo essa propensão natural a divertir-se tem consequências inesperadas: banalização da cultura, generalização da frivolidade e, no campo da informação, a proliferação do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo (Posições 282-286).
Vargas Llosa apresenta como notas características desta civilização do espetáculo a massificação e a frivolidade. Na primeira, ocorre a formação do “homem-massa” de que fala Ortega y Gasset, um processo “regressão do indivíduo à condição de partícipe da tribo”, na qual, “amparado no anonimato”, libera seus instintos irracionais e agressivos (Posição 352).
Quanto à segunda, a definição merece transcrição, por convir ao tema de The Young Pope:
Frivolidade consiste em ter uma tabela de valores invertida ou desequilibrada, em que a forma importa mais que o conteúdo, e a aparência, mais que a essência, em que o gesto e o descaramento – a representação – ocupam o lugar de sentimentos e idéias. […] Isso é frivolidade, maneira de entender o mundo, a vida, segundo a qual tudo é aparência, ou seja, teatro, ou seja, brincadeira e diversão (Posições 490-500)
É justamente contra a tentação de ser um Papa frívolo, vaidoso, entregue ao exibicionismo barato, descarado, que Lenny Belardo luta constantemente. A recusa em aceitar a tabela de valores invertida, que prioriza a aparência ao invés da pessoa, é a nota mais impactante desta personagem e, diria, a mais admirável: Belardo não cede ao espetáculo, não permite que sua consciência se desmanche na massificação publicitária moderna.
Mario Vargas Llosa
A negativa expressa da personagem à proposta de transformar o Papa em um “astro de rock” permite uma interessante relação entre Sorrentino e Vargas Llosa. É que o escritor peruano afirma precisamente que as grandes festas de massa substituíram as liturgias públicas tradicionais, secularizando o que antes só tinha sentido na religião:
Esse estado de coisas impulsionou a exaltação da música, transformando-a em signo de identidade das novas gerações no mundo inteiro. As bandas e os cantores da moda reúnem multidões que ultrapassam todas as previsões em shows que, tal como as festas pagãs dionisíacas que na Grécia clássica celebravam a irracionalidade, são cerimônias coletivas de desregramento e catarse, culto aos instintos, às paixões e ao desvario. E o mesmo pode ser dito, é claro, das festas de massa com música eletrônica, as raves, nas quais se dança na escuridão ao som de música trance e se viaja graças ao ecstasy. Não é descabido equiparar essas celebrações às grandes festividades populares de índole religiosa de outrora: nelas se inverte, secularizado, o espírito religioso que, em sintonia com o viés vocacional da época, substituiu a liturgia e os catecismos das religiões tradicionais por manifestações de misticismo musical […]. Na festa e no show de massas os jovens de hoje comungam, confessam-se, redimem-se, realizam-se e gozam desse modo intenso e elementar que consiste no esquecimento de si mesmo (Posição 342-352).
Qual deve ser a resposta da Igreja ante esse mundanismo desenfreado? Transformar o Papa num “astro de rock” e as Missas em raves? “O Papa é pop e o pop não poupa ninguém”? Infelizmente, esta parece ter sido a solução adotada nas últimas décadas: a liturgia, em lugar de ser um contraponto ao mundo, tornou-se ela mesma mundana; sacerdotes desempenham os mais espalhafatosos papéis, só não aquele para o qual foram ordenados; não existe silêncio na Igreja, só barulho, algazarra, movimento — em uma palavra: inquietação, o que levou a poetisa brasileira Adélia Prado a afirmar: “tem algumas celebrações que a gente sai da igreja com vontade de procurar um lugar para rezar”.
Pio XIII não aceita esta postura e a critica com veemência, em discurso aos Cardeais, especificamente no seu predecessor imediato — a série não revela quem é, mas, segundo as entrevistas que lhe seguiram, o predecessor seria o atual Pontífice, Francisco.
Não parece contraditório um cineasta que rejeite o espetáculo? Sorrentino, contudo, aborda o tema continuamente. Em Youth, o maestro Fred Ballinger está num hotel lotado de artistas meio que frustrados, engolidos pelo espetáculo de suas vidas: ele, Ballinger, só é lembrado por uma de suas obras; outro, um ator, só é recordado por uma das personagens que interpretou; e assim por diante. As personagens não têm personalidade: foram tragadas pela aparência e agora vivem na depressão por isso.
Mas é em La Grande Belleza que o tema será esmiuçado pelo diretor. A propósito, Sorrentino quis expressamente relacionar este filme e The Young Pope. Alguns elementos o indicam, inclusive visuais. Tanto no filme quanto na série o pomar de laranjas colhidas por freirinhas em alvos hábitos religiosos são símbolos da paz interior e o silêncio que não se pode obter no mundo dos flashs e do barulho: é para o pomar que Pio XIII vai para fugir da urbe, uma espécie de sentimento bucólico; é para ele que Jep Gambardella olha com nostalgia da época em que era uma pessoa. No filme há referência a um Papa que, contudo, jamais aparece; o Pontífice não se mostra nem mesmo quando, no Vaticano, é ele o anfitrião de uma freira missionária com fama de santidade e apesar de nesta recepção estarem presentes vários Cardeais e líderes de outras religiões. Não é demais supor que o Papa de La Grande Bellezza seja o Pio XIII de The Young Pope e que, como Balzac em sua Comédia Humana, Sorrentino tenha pretendido criar duas histórias que transcorrem ao mesmo tempo, no mesmo universo, mas com personagens diferentes.
Seja como for, a principal relação entre as duas obras cinematográficas está no tema do espetáculo. Tratemos de La Grande Bellezza, da qual The Young Pope é a outra face da moeda.
Jep Gambardella, como dissemos, é um escritor extremamente conhecido e bem relacionado na alta sociedade romana. Foi ao glamour da high society que Jep dedicou a vida: segundo ele, não queria ser apenas mais um; queria ser o rei da alta sociedade. No filme, já septuagenário (provavelmente), Jep confessa que isso lhe fizera ser engolido pelo que ele classifica como um “redemoinho”: buscara ser o rei de um mundo de aparências e, de tanto aparentar, tornara-se nada mais que um espectro semi-corpóreo, sem personalidade.
Num dado momento, afirma que Roma é o “coletivismo puro”, um lugar onde ninguém consegue ser superior por mais de uma semana, sem logo ser trazido de volta à “aura mediocritas” — aqui nos recordamos de Vargas Llosa e seu diagnóstico de que a mediocridade, ou frivolidade, é uma das notas essenciais da Civilização do Espetáculo.
No mundo de Gambardella, até um funeral é transformado num espetáculo: quando todos se sentam, Jep protagoniza uma encenação trágica, indo ao caixão do jovem morto com drama nos passos e, depois, prestando condolências fingidas à mãe do falecido. No início do filme, uma atriz em declínio, cocainômana, é dita por ele: “já não serve mais para nada”. Nada mais ilustrativo de quem só viva de aparência: uma atriz, cujo ofício é desempenhar um papel, transforma aquilo na sua própria personalidade; extinguindo-se o ofício, extinguiu-se a existência, pois a própria vida era um teatro de fingimentos pueris.
Mas Jep Gambardella não está imune à destruição da consciência que ele mesmo se infligiu ao se deixar engolir pelo redemoinho da alta sociedade: o seu diagnóstico é dado por uma criança — “você não é ninguém”. A um mágico que fizera desaparecer uma girafa, Gambardella pede: “me faça sumir também”. “É só um truque”, o outro responde. Uma vida cuja realidade é não ter realidade alguma, exceto o fingimento, o truque – sua herança é o sumiço, o desaparecimento, a aniquilação. Jep Gambardella não pode ser feito sumir, porque já sumira voluntariamente.
Quanta contradição: aparecer é sumir; o espetáculo é um desaparecimento; mostrar-se é aniquilar-se. A Civilização do Espetáculo transforma em um nada aqueles que encontram no seu palco o único papel de suas vidas.
Em The Young Pope é justamente o contrário: “ausência é presença”, afirma Pio XIII.
O Papa fictício que não aparece para o mundo é, justamente, aquele que as pessoas mais anseiam por ver — é assim que ele, numa jogada política astuciosa, controla o primeiro-ministro italiano: “imagine se antes das eleições eu decido aparecer…”
A tentação do espetáculo é um combate constante da personagem principal. E Lenny Belardo pode se dizer um vencedor quanto a isto: não cede, em momento algum, à vaidade das aparências, do fingimento, do truque. Conserva incólume a consciência individual — ainda que, por vezes, seja afetado pelas turbulências e dúvidas quanto a isso.
Há um desenvolvimento muito interessante sobre isso no seriado. Em seu primeiro discurso da sacada da Basílica de São Pedro, um discurso feito nas sombras, Belardo diz aos fiéis: “se querem me ver, vejam primeiro a Deus”.
A intenção do dito se esclarece ante outras palavras da personagem durante a série, apelando a um olhar para Deus, antes que a ele mesmo — de fato, em alguns momentos da Igreja, como o presente, parece que o olhar se dirige excessivamente ao Papa e pouco Àquele de quem ele é Vigário e do qual deve apenas repetir a voz. O Papa não é um representante de si mesmo, nem fala só por si: seu múnus, sua missão, recebeu de Cristo, para apascentar o rebanho, que é a Igreja.
O Papa guarda o Evangelho que recebeu de Cristo e dos Apóstolos; não cria um evangelho novo: “Pois o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de S. Pedro para que estes, sob a revelação do mesmo, pregassem uma nova doutrina, mas para que, com a sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente o depósito da fé, ou seja, a revelação herdada dos Apóstolos”, ensina a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, do Concílio Vaticano I.
Voltemos: “se querem me ver, vejam primeiro a Deus”. Lenny só permite ser visto no último episódio, num discurso público, desta vez às claras. Como ele mesmo previra, é grande o eflúvio de fiéis ansiosos para ver o rosto do seu Papa. Mas o que talvez pode passar despercebido é que a história não coloca a aparição de Belardo num momento qualquer: ela ocorre depois que o Arcebispo Kurtwell, um pedófilo, tentando atacar o Papa, divulga à imprensa um conjunto de cartas de amor do tempo em que Belardo era sacerdote, pretendendo com isso causar um escândalo.
O tiro, contudo, não funcionou: Belardo jamais enviara as cartas; durante toda a vida, as escreveu à sua namorada de juventude, sem nunca remetê-las. Eram um exercício meditativo sobre o amor que ele conservava em si, mas decidira renunciar por um Amor maior – estava “casado com Deus”.
A imprensa, contudo, publica as cartas de amor do Papa. Isso ocorre ao fim do 9º episódio, antepenúltimo da temporada. O último episódio começa com uma nota ao rádio:
O mundo parou. Há dias acontece o que não víamos há muito tempo. Noticiários, jornais, redes sociais não dão atenção ao mal, mas ao bem. Não à guerra ao terrorismo, mas ao amor. Tudo graças às cartas de amor de partir o coração de Pio XIII. O mundo parou. Parou para falar de amor.
Então, Pio XIII decide se mostrar ao mundo. Cumprira sua promessa: “Deus caritas est” — Deus é amor. As pessoas viram Deus; agora poderiam vê-lo.
Nada mais distinto do espetáculo, que apenas aparenta ser, do que parar para falar de amor — de Deus, aquele que não parece ser, mas que é.
Moisés disse a Deus: “Quando eu for para junto dos israelitas e lhes disser que o Deus de seus pais me enviou a eles, que lhes responderei se me perguntarem qual é o seu nome?”
Deus respondeu a Moisés: “EU SOU AQUELE QUE SOU”. E ajuntou: “Eis como responderás aos israelitas: (Aquele que se chama) EU SOU envia-me junto de vós.” (Êxodo 3, 13-14).
3. ALIMENTO SÓLIDO
O passado é um lugar enorme e cheio de coisas.
(Lenny Belardo, The Young Pope)
Conservadorismo significa encontrar o que você ama e agir para proteger isso.
(Roger Scruton)
Quando eu assisti ao primeiro teaser de uma série sobre um Papa jovem, imaginei que ela condensaria todos os clichês modernos sobre como um Papa deve ser: progressista, liberal, antenado com o mundo, aberto às novidades da moda. Mais um panfleto, pensei. Surpreendi-me de ver que o jovem Papa, ao contrário do esperado, é um tradicionalista.
Os Cardeais progressistas logo expressam sua preocupação com o nome escolhido: Pio XIII. Se for uma tentativa de ligação com Pio XII, diz um progressista, seria um “péssimo sinal”.
Logo no 1º episódio, Belardo diz a Voiello sua prioridade: recuperar a tiara papal, “da qual meus predecessores, que colocavam sobriedade à frente de tradição, imprudentemente se desfizeram”.
A tiara, ou triregnum, é a coroa por excelência do Papa. Formada, na verdade, por três coroas, ela relembra que o Papa tem poder temporal — sobre os príncipes e reis seculares —, poder episcopal — como Bispo de Roma — e poder pontifício – como Vigário de Cristo. Há outras interpretações, mas todas, de alguma forma, ligadas ao seu tríplice ministério, conferido a todos os cristãos através do Batismo, mas em ponto culminante na pessoa do Papa: Sacerdote, Profeta e Rei.
A tiara foi abolida em 1964 pelo Papa Paulo VI, o Pontífice que implementou as reformas do Concílio Vaticano II, numa toada bastante progressista — da qual ele mesmo, ao fim do Pontificado, pareceu arrepender-se, como demonstrou em alguns discursos públicos famosos. A tiara papal estava sendo doada, segundo Paulo VI, para os pobres.
Em 1968, essa tiara foi adquirida pelo Arcebispo de Nova York, o Cardeal Spellman, para ser exposto na Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição, em Washington D.C.
O Vaticano possui uma coleção de tiaras pertencentes a outros Papas, mas Pio XIII não quer utilizá-las: ele quer recuperar aquela tiara específica, a do Papa que “imprudentemente se desfez [dela]”, e que fora adquirida pelo seu predecessor na Arquidiocese de Nova York. Se foi um acidente de Sorrentino ou de caso pensado (falaremos, na segunda parte deste ensaio, sobre como as boas narrativas simbólicas conservam coerência até nos seus acidentes), a exigência da recuperação da tiara de Paulo VI, com a qual Pio XIII fará questão de aparecer perante os Cardeais, como Papa-Rei, não deixa de encerrar um excepcional simbolismo de restauração do que fora desfeito.
Ao longo do seriado, não apenas esse elemento é recuperado: também a sedia gestatoria, o trono papal carregado por doze homens da corte pontifícia (chamados sediari), utilizado pela última vez por João Paulo I, é refeito e utilizado, assim como os flabelos, dois grandes leques de penas de avestruz levados ao lado da sedia gestatoria; o Papa volta a utilizar paramentos belos em detalhes, ricamente ornados, luvas e mocassins bordados; até mesmo a batina de uso diário, a partir de dado momento do seriado (justamente após apresentar-se como Papa-Rei), passa a ser de um tecido trabalhado com ornamentos dourados. Também liturgicamente: a única Missa rezada no seriado é a Tridentina, da qual Voiello, progressista, reclama de que causa sono. Paolo Sorrentino, que é um diretor de um bom gosto estético excepcional, não economiza quanto a isso: o figurino, o cenário, a fotografia, toda a pompa dos paramentos eclesiásticos e dos elementos litúrgicos — tudo é fabuloso e encantador, enche os olhos do espectador; o deslumbramento provocado gera uma verdadeira “nostalgia” dos tempos da Igreja que não foram conhecidos pela geração atual.
Pio XIII também pretende restaurar disciplinas antigas: ao primeiro-ministro italiano, afirma que retomará o non expedit, criado pelo Beato Pio IX em 1874 para proibir os católicos italianos de participarem das eleições (uma reminiscência do poder temporal do Papa, quando a Igreja foi espoliada de seus bens pelo Reino da Itália); e a Voiello, afirma que pretende revogar a permissão concedida a todos os sacerdotes, indistintamente, de remitirem a excomunhão por aborto diretamente no confessionário (essa extensão foi feita pelo Papa Francisco, em 2016, com a Carta Apostólica Misericordia et Misera; antes a remissão da excomunhão era reservada aos Bispos).
Neste momento, Voiello se atemoriza; diz ao Papa que a medida irritará as feministas do FEMEN. Uma cena fabulosa ocorre depois: o Papa fuma à noite no jardim de Castel Gandolfo, sua residência de verão, quando um grupo de feministas de seios desnudos emerge das plantas, cada uma com uma letra pintada no corpo, formando a palavra “bastardo”. Não deixa de ser prazerosa a impassibilidade superior com que Pio XIII observa aquele espetáculo, sem mover um músculo do rosto, apenas dando outra tragada no cigarro: ele simplesmente não se afeta com aquelas pressões. Ao menos na ficção, Pio XIII conseguiu cumprir sua promessa, enunciada a Monsenhor Bernardo Gutierrez no 3º episódio: não quer os católicos com olhares de decepção, “nunca mais”. Esta cena não decepciona.
“O passado é um lugar enorme e cheio de coisas. Não é como o presente, uma fresta estreita onde só cabe um par de olhos: os meus”, diz a Voiello.
Caltanissetta, o Cardeal mais velho do seriado, é quem revela a estranheza ao próprio Papa: “Santidade, você é tão jovem, mas com idéias tão velhas”.
De fato, este é um dos conflitos mais interessantes do seriado inteiro: velhos caquéticos, porém progressistas; e um jovem cheio de vitalidade, porém tradicional, “reacionário”.
É um fenômeno dos nossos tempos, esse dos jovens conservadores, reacionários e tradicionais, cujo crescimento e mobilidade vigorosa se dá em níveis há muito tempo não vistos. Nos EUA, a eleição de Donald Trump, segundo uma pesquisa da própria CNN, arregimentou 37% dos votos entre 18 e 29 anos. Em números absolutos, pode parecer uma vitória do progressismo, mas a força e o vigor do eleitorado jovem foram essenciais para a militância do novo Presidente americano. No Brasil, em 2013, a Carta Capital publicou matéria em que se ressente da “consolidação às claras de um neoconservadorismo nos moldes americanos, em boa medida revigorado pela juventude” e comenta uma pesquisa da Datafolha, de 2008, em que o mesmo número aparece: 37% dos jovens se definiam como “de direita”, contra 28% que se definem como “de esquerda” — com um grande centrão, no qual a influência do conservadorismo só parece ter crescido na última década. Na Igreja não é diferente; basta ir em qualquer Missa Tridentina e o dado é visível: é uma Missa para jovens.
Sorrentino conseguiu captar uma realidade que vem sendo negada pelos “intelectuais” de academia: a geração de 68 fadigou.
Esse é o simbolismo, aliás, da rejeição dos pais de Lenny: filho de hippies da década de 60, um fruto da liberação sexual daqueles anos loucos, Lenny Belardo busca encontrar raízes numa tradição que se perdera, em fundamentos que foram rejeitados pelos seus pais e que conduziram à insanidade daqueles tempos, consignada no símbolo de sua própria orfandade. Não é à toa que, no último episódio, revendo os pais de longe, mais uma vez eles lhe dão as costas: não há comunicação entre as duas gerações; uma abdicou de todos os fundamentos, a outra tenta restaurá-los, porque o caminho evidentemente não deu certo.
Não é a primeira vez que Sorrentino toca no assunto. Novamente fazendo uma ligação com La Grande Bellezza — o que nos permite, outra vez, considerar que as duas obras se encontram no mesmo panorama —, é possível perceber que a geração dos pais de Lenny é a mesma geração do septuagenário Jep Gambardella, que diagnostica sobre a gente de seu tempo: “Somos todos os desesperados”. E o desespero vem de não haver fundamento algum, de terem abdicado de todos os valores em nome do credo de Herbert Marcuse: “é proibido proibir”.
“O velho é melhor que o novo”, afirma a editora de Jep Gambardella, justificando porque gosta de comer arroz requentado.
Uma outra frase significativa a respeito surge ligada a uma preferência alimentícia. A Irmã Maria — a missionária africana apresentada como santa em La Grande Bellezza, não a Irmã Mary de The Young Pope — pergunta a Jep: “por que você não escreveu outro livro?” “Eu procurava a grande beleza, mas não encontrei”, ele responde. Ao que ela pontifica: “sabe por que eu só como raízes? Porque as raízes são importantes”.
Perceba-se que na própria construção da frase está o seu significado: inicialmente apresentado de forma genérica, o vocábulo “raízes” ganha um artigo definido depois — “as raízes são importantes”. A Irmã Maria come raízes para não esquecer da importância dos fundamentos; Jep Gambardella, ao contrário, não foi capaz de encontrar a grande beleza, caindo no vazio e na aniquilação, porque não se alimentou das raízes, não conservou os fundamentos. Tornou-se um desesperado, de uma geração de desesperados.
Lenny Belardo encontra a redenção de sua orfandade, de seu abandono pelos pais, exatamente no contrário: buscando os fundamentos, se alimentando das raízes — que ele jamais conheceria, possivelmente, se tivesse sido educado pela família de hippies. E estas raízes ele vai encontrá-las na tradição da Igreja.
Há um simbolismo muito bonito nisso tudo e Sorrentino capta muito bem o problema central das gerações, o conflito entre a demolição da década de 60 e os esforços recentes por restaurar uma civilização perdida a partir dos seus escombros.
Em 2013, quando entrevistei o filósofo Roger Scruton, para a Revista Vila Nova, perguntei-lhe quais eram os argumentos para o conservadorismo; isto foi o que ele me disse:
“Aqui está a minha resposta mais curta: conservadorismo significa encontrar o que você ama e agir para proteger isso. A alternativa é encontrar o que você odeia e tentar destruir. Certamente a primeira alternativa é um modo melhor de viver do que a segunda.”
A geração de 60, dos pais de Lenny, encontrou o que odiava e tentou destruir isso: na revolução cultural gramsciana, era necessário precisamente destruir as raízes do Ocidente — a moral judaico-cristã, o direito romano e a filosofia grega — para instaurar o socialismo. A este respeito, Olavo de Carvalho escreveu nota em seu Facebook:
Não é indiferente a esse estado de coisas o fato de que os frankfurtianos, criadores de boa parte dele, só acreditavam na força da negatividade e por isso só incorporaram elementos da cultura milenar do Ocidente na medida em que estes possuíam, a seus olhos, algum poder dissolvente e corruptor.
Theodor W. Adorno, temeroso e escandalizado quando estudantes intoxicados de “dialética negativa” invadiram a sua sala de aula demolindo tudo, foi a mais literal versão moderna do “Aprendiz de Feiticeiro”.
Que, em The Young Pope, faz Lenny Belardo? O contrário: viver a primeira alternativa apontada por Scruton, “encontrar o que você ama e agir para proteger isso”. E é por isso que ele é, como acusam os Cardeais octogenários e progressistas, “um jovem com idéias tão velhas”.