Um universo riquíssimo e belo, com temas muito variados, criaturas mitológicas e idiomas intrigantes… Muito mais do que uma narrativa fantástica pop, JRR Tolkien alcançou um propósito muito ambicioso: criar uma mitologia propriamente ocidental e católica.
J.R.R. Tolkien é um dos autores do chamado “renascimento católico inglês”, que conta também com o Cardeal Newman, canonizado no ano de 2019, Chesterton, Hillaire Belloc entre outros.
Ele e seu grande amigo C.S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia, talvez sejam os maiores exemplos de escritores do gênero fantástico que se utilizam da fé cristã como pano de fundo em suas obras.
Mas, diferentemente de Lewis, que o faz por meio de alegorias, das quais está repleto o mundo de Nárnia, a teologia cristã não é comunicada tão explicitamente no universo tolkieniano, ainda que seja profundamente catequético.
Para o criador do Senhor dos Anéis, crítico dos excessos alegóricos de Nárnia, a Terra Média devia ser a mais parecida possível com um mundo real, de modo a aproximar-se do próprio ato divino da criação. Tolkien queria que os seus leitores acreditassem que o produto da sua criação pudesse realmente existir de algum modo, não sendo um “simples” instrumento de evangelização.
Talvez por isso vejamos repetidamente em suas narrativas histórias de pecado e redenção, ordem e caos, amor e revolta, heroísmo e covardia. Não é assim a vida humana desde a queda? Ali encontramos perfeitamente retratada a tensão moral do homem decaído.
Daí que possamos extrair valiosíssimos conselhos sobre como podemos enfrentar nossos próprios desafios e problemas e como superar as nossas próprias tensões na vida deste mundo.
Afinal, é perceptível que a obra de Tolkien parte de um profundo diagnóstico sobre o nosso próprio mundo, num contexto em que as nações estavam se afastando de Cristo, negando e esquecendo Seu Evangelho e mesmo repudiando sua identidade cristã.
E isso porque ele mesmo testemunhou em seu continente a negação das raízes Cristãs sobre as quais todo o Ocidente se fundamenta — processo que hoje parece já quase consumado.
Vemos isso claramente em diversos momentos em seus escritos, como nas narrativas da Segunda Era, em que os povos da Terra Média se afastam e mesmo se revoltam contra os Valar, que são como anjos superiores, representantes de Deus no mundo.
Tolkien procura demonstrar como não adianta buscar qualquer solução para os problemas do mundo sem operar, antes, uma grande restauração moral — exatamente o problema com o qual a Europa se deparava naquela época —, uma restauração da própria Lei do Evangelho nas sociedades. Essa é a temática de O Senhor dos Anéis, que se passa na época seguinte, a Terceira Era.
Tolkien sabia ser imprescindível que uma ordem moral dirija a ordem social e política…
Não adianta tentar, para Tolkien, combater o Mal com instrumentos inferiores a ele: a política agnóstica, que não reconhece o lugar de Deus, da Lei Natural, da razão e da dignidade humanas; as estratégias amorais, que pensam a política como uma realidade fincada num terreno onde não há regras; a diplomacia covarde; ou o relativismo psicológico e institucional, que nega a força da verdade descoberta pelo homem e revelada por Cristo.
Em O Senhor dos Anéis, essas tentativas fracassadas são simbolizadas na obra por aqueles que tentavam lidar com Mordor — a terra de Sauron, inimigo de todos — através de acordos covardes, como se pudesse haver uma transigência com aquilo que nega completamente os valores que compõem e dão sentido à nossa própria existência, ou ainda através do uso do Um Anel, que era de Sauron, contra o próprio Sauron, coisa que só o tornaria mais forte.
Tolkien demonstra que essas tentativas amorais e relativizadoras do Mal tornam o homem um seguidor do próprio Mal, pois ele é cooptado por ele e se corrompe. Lembremos do exemplo do mago Saruman, que, em função de um acordo relativista, acaba tornando-se o mais impiedoso servo de Sauron, quando deveria ser seu franco opositor.
Não adianta nada disso: é preciso combater o Mal na sua raiz, isto é, no pecado.
Não adianta combater o mal através de suas próprias regras.
A história inteira é uma lembrança disso: é preciso destruir o Anel, não usá-lo; é preciso combater o Mal, não ceder a ele; é preciso vencer o pecado, não cair nele; é preciso restaurar a Verdade no mundo, não aceitar viver uma mentira.
Durante toda a obra de Tolkien somos levados a nos questionar se nós mesmos estamos fazendo nossa parte no mundo para que o Evangelho seja restaurado na nossa sociedade — se nós mesmos estamos combatendo e vencendo o Anel do Poder e ajudando a destruir a Mordor que domina o mundo moderno ou se, ao contrário, estamos sendo seus cúmplices ou servos.
E o melhor de tudo é que, ao fim, somos forçados a perceber que todas as tentativas de restauração do Ocidente — lá também — que seguiram estratégias fracas, vazias, que apenas esconderam o Anel ou tentaram fazer acordos com ele, fracassaram sem a menor condição de resistência.
É uma lembrança, na literatura, do que profetiza Daniel sobre Cristo (7,14):
“A ele foram dados império, glória e realeza, e todos os povos, todas as nações e os povos de todas as línguas serviram-no. Seu domínio será eterno; nunca cessará e o seu reino jamais será destruído.”
Só o Evangelho poderá restaurar o Bem no mundo, pois apenas a Cristo foi dado “todo o poder, nos céus e na terra” (Mt 28,18). O tema da obra de Tolkien é que qualquer salvação, das almas individuais e das sociedades, fracassará se não estiver profundamente enraizada em Cristo.
Só assim se pode encontrar vitória.